Texto base para o debate do XV Encontro



GREVE PARA QUE TE QUERO II

A origem da palavra “greve” é já muito antiga, derivando do gaulês para o latim como grava, cujo significado era areão grosso, gravilha. Do latim derivou para o francês. Numa certa praça de Paris, em que era abundante um certo tipo de gravilha e gravetos, foi dado o nome de Place de Grève. Em 1806, mudou o nome para Place de l´Hôtel de Ville, porque ali se edificou o que ainda hoje é um dos mais belos prédios de Paris, a Câmara Municipal da cidade. Aquela praça original tornou-se um local onde se juntavam trabalhadores sem emprego, em busca de alguma ocupação. Quando os patrões parisienses precisavam de algum trabalhador, era aí que iam à procura de mão-de-obra. Daí surgiram expressões como "ir à greve" (aller en grève), "estar em greve" (être en grève) e outros correlatos, para designar o trabalhador que, sem trabalho, lá ficava de braços cruzados sem ter que fazer.
A origem das greves já vem de tempos bíblicos, embora algumas correntes apenas as considerem a partir da Revolução Industrial (1760 a 1850), após o surgimento do trabalho assalariado e a tomada de consciência de classe, por parte dos operários e a sua perspectiva de tomar o poder à burguesia reinante e instaurar uma sociedade dirigida por um estado operário. Digo que vem de tempos bíblicos porque é precisamente no livro do Êxodo (Capítulo V), que há a primeira referência a uma recusa ao trabalho. A 14 de Novembro de 1152 a.C. os artesãos da Necrópole Real de Deir el-Medina do Faraó Ramsé III, de forma organizada e sistemática, levaram a cabo paralisações contra as más condições de trabalho. O facto, inédito, ficou registado num papiro ainda hoje existente num museu de Turim. Outros factos houve ainda na “pré-história” do Direito do Trabalho como o dos mineiros de "Sunium e Laurium", 650 a. C., as reivindicações da plebe romana, século V a. C., ainda as atitudes de rebeldia e sedição eclodidas em 997, na Normandia e em 1.008 e 1.024 na Bretanha.
Foram vários os tipos de rebelião e recusa concertada que houve em tempos recuados até aos grandes embates da era industrial:

Data                Tipo de luta                                              Local

1619    Greve de Artesãos Polacos Jamestown           Colónia da Virgínia
1636    Revolta dos assalariados e Pescadores            Província do Maine
1661    Conjuração dos assalariados                           Colónia da Virgínia
1663    Greve dos assalariados do Maryland               Província de Maryland
1675    Protesto dos carpinteiros navais Boston           Massachusetts colónia Bay
1676    Rebelião de Bacon                                         Colónia da Virgínia
1677    Greve dos “carters” de Nova Iorque               Província de Nova Iorque
1684    Greve dos “carters” de Nova Iorque               Província de Nova Iorque

A greve, desde a sua origem mais remota, é uma acção colectiva que visa a satisfação de determinadas aspirações ou reivindicações dos trabalhadores de uma empresa, de um sector de actividade, de categoria profissional e sempre de forma concertada. A greve é uma prova de força entre os trabalhadores e as entidades patronais, para resolução de determinadas questões laborais ou políticas e à saída da qual quem tiver conseguido maior força de pressão poderá impor as melhores condições num acordo entre as partes. Ao parar de trabalhar, o trabalhador manifesta-se como um homem livre, pois liberta-se, ainda que momentaneamente, das grilhetas que o prendem ao patrão. O objectivo da greve é fazer ver ao patrão que é ele que precisa do trabalhador para obter lucro, enquanto este poderá sempre ir vender a sua força de trabalho para outro qualquer patrão. São os patrões que precisam dos trabalhadores e não o contrário até porque estes podem-se organizar e produzir autonomamente.
Foi dito acima que uma greve é uma prova de força na qual está implícita uma luta. Esta luta, mais abafada ou mais declarada, faz parte de uma permanente contradição da nossa sociedade que se joga entre o Trabalho e o Capital. Na correlação de forças entre estas duas entidades, nascem as leis, que poderão ser mais benéficas para um lado ou para outro, conforme essa correlação pender mais para um lado ou para outro. Nas relações laborais, também se manifesta este princípio. O patrão pagará melhor ou pior, dará piores ou melhores condições de trabalho dependendo da correlação de forças que houver em determinado momento na sociedade e das leis que ela gerar. A greve como forma de pressão, é apenas um instrumento dessa luta, mas é dos mais importantes, pois prejudica o lucro do patrão e dá a sensação de homem livre ao trabalhador. Há, na génese da greve e na sua essência mais profunda, sempre um cunho político de que não se pode dissociar. Quando vemos sindicatos, e correntes sindicais, a apelar a greves não políticas, algo está mal. Uma greve é uma recusa à submissão da lei laboral vigente, é portanto um desafio à autoridade do patrão e do estado que o representa. Greve por aumento de tostões, ainda que pareça só por questões económicas ou de sobrevivência é também política. Não tem grande alcance, é uma política falhada, mas tem sempre um fundo político. A doutrina tradicional, por exemplo, é unânime em afirmar a “nocividade” e a ilegitimidade da greve política, tendo um claro “ponto de vista de classe” a respeito do assunto; não deve ser político aquilo que às classes dominantes interessa que não seja político, mas os proprietários dos meios de produção, através do Estado, através das mais diversas instituições, concretamente fazem política 24 horas por dia.
O direito de greve decorre do direito ao trabalho. Não é a sua polaridade, mas está contido no próprio direito ao trabalho como sua “negação”. O direito ao trabalho contém o direito de negar-se a trabalhar em condições que não respondem às necessidades sociais mínimas, que são historicamente relativizadas em cada formação social determinada. Nos Estados Unidos, por exemplo, a “baixa” do padrão de vida impulsiona a greve. Noutros países, a fome. Noutros ainda, as condições em que se presta trabalho.
A valorização da greve pelo Direito decorre ordinariamente da necessidade de reprimi-la e não de garanti-la. Tal conclusão vem do exame de todos os sistemas normativos que não a têm como instituto de porte constitucional auto-aplicável. Não é gratuitamente, pois, que a lei e a doutrina separam de forma metafísica a “greve económica” da “greve política”. Dizia Juan Garcia Abellan, sobre a natureza do Sindicato, que é o agente fundamental da greve: “a tese despolitizadora dos sindicatos vem sustentada por dois aspectos de uma mesma colocação; formalmente, nega-se o carácter político ao Sindicato, a partir da sua tendência a superar o regime de partido político ou o sistema da classe governante instalada sobre uma ideologia política. E materialmente nega-se, também, a sua significação política ao entendê-lo como um sistema de compensação económica, livre de todo o problema que não corresponda a uma técnica de partilha e produção de bens sobre base laboral estrita. Qualquer das duas premissas, no entanto, parte de um conflito e chegam a soluções tipicamente políticas”. Para negar o carácter político dos Sindicatos, logo, das suas actividades caracterizantes como a greve, erguem-se teses eminentemente políticas, ou seja, que buscam a mediação das tensões sociais, com a finalidade de superá-las.
É no entanto com o alvorecer e desenvolvimento da industrialização que se dão os grandes embates grevistas por melhores salários, melhores condições de vida e trabalho, contra governos e ditaduras. Lembremos algumas das greves mais significativas do século XX: a greve geral de 1917, no Brasil; a dos mineiros asturianos na Espanha de 1934; a dos camionistas, nos últimos dias de Allende, no Chile de 1973; as greves do ABC, nos estertores da Ditadura, no Brasil de 1979-1981; a dos mineiros do Reino Unido, contra o neoliberalismo, em 1982; a dos petroleiros contra a privatização, no Brasil de 1995.
Em Portugal apenas em 1871 se deu a primeira greve que ficou registada no nº 49 de “As Farpas”, mais tarde coligidas no livro "Uma Campanha Alegre", de Eça de Queirós. Aconteceu em Oeiras, a greve dos tecelões da Fábrica de Lanifícios de Oeiras, que durou um mês e seis dias. A fábrica situava-se junto à foz da ribeira da Laje, tinha uma área de 1442 m2 e apresentava três edifícios distintos: teares mecânicos, arrecadação de lãs e drogas e teares manuais. Em 1864 empregava 60 operários, número que em 1881, ascendia a 594.
Foram todas elas grandes lutas e todas nos devem fazer reflectir sobre o que se passou após. E no balanço de muitas destas lutas heróicas, temos de chegar à conclusão que a força despendida pelos trabalhadores, foi superada pela força que os patrões ou governos detinham. Quer com a repressão mais brutal, ou mesmo assassinato, com ameaças de vária ordem ou cerceamento económico, como o despedimento, tudo tentado para desmobilizar os trabalhadores. Os patrões, e o seu Estado, nestas questões organizam-se e não descuram qualquer pormenor, ao contrário de muitos sindicatos que com a promessa de acordos eminentes, desmobilizam, recuam, vacilam, deixando a grande força disposta a tudo, defraudada e desmobilizada para novos confrontos. Ao longo dos tempos o que os trabalhadores tiveram de aprender foi que precisam de mais e melhores organizações, de organizar greves de forma mais inteligente e cirúrgicas, que deixem às entidades patronais a marca da perda de lucro sem dar o flanco à “justificação legal” da ilegalidade da greve, o que é um paradoxo, pois se a greve é a suspensão da lei laboral. Aprenderam também que só organizando-se de forma coesa e auxiliando-se de outros sectores ou em conjunto com um grande número de outros trabalhadores, é que poderão ter vitórias na luta pela liberdade verdadeira.
Num momento em que as movimentações grevistas alastram por todo o mundo, desde a Grécia, Irlanda, Espanha, todo o norte de África e mais recentemente Angola e Portugal, não se prevendo no momento em que isto está a ser escrito qual vai ser o novo foco amanhã, num momento destes urge, mais que nunca, fazer um balanço do que são e para que servem estas formas de luta dos trabalhadores, tenham elas um cunho mais ou menos legal, mais ou menos político. O que se tem verificado é que com as greves e manifestações de rua, algumas vezes com confrontos com forças de repressão, se têm conseguido depor ditadores de longa data, como Mubarak do Egipto, mas não se têm ainda imposto governos que vão de encontro ao desejo dessa massa de reivindicadores. Faz falta a todo esse movimento um objectivo final que não seja o simples derrube da figura do ditador, tem de se pensar no depois do derrube. E o que a história das greves mostra é que tem de haver um objectivo final avançado e uma organização férrea em torno desse objectivo final. A força que derruba ditadores, pode ser a mesma que impõe governos de acordo com a maioria dos povos. E mesmo que aparentemente não se viva em ditadura, ela existe sempre que haja um Estado, só com movimentações e manifestações de força se pode alterar a tal correlação que existe na sociedade, pois a parte que detém o poder não tem problemas em utilizar todos os meios ao seu alcance, incluindo a força ou imposição de medidas pela força, para manter o seu domínio, como acontece com o OE deste ano. Por isso, lá como cá, a situação é a mesma.

A. Gamboa

Março de 2011


 ANEXO

XLIX

Novembro 1871.
Este mês a opinião preocupou-se com o que se chamou a greve de Oeiras.
Parecia realmente indecoroso que Lisboa, já civilizada, com teatro lírico e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse chique social – a greve! Oeiras, com uma dedicação amável, forneceu-lhe esta elegância. Oeiras deu a greve. Alguns estadistas puderam ter ocasião de comentar a nossa última greve, e de falar no terrível proletariado.
Somente esta greve de Oeiras apresenta uma novidade excêntrica.
O fabricante diz:
– Eu dou a esses operários indignos, que abandonaram a minha fábrica e se puseram em greve, 4$000 réis por semana. Vinde!
E os operários respondem:
– Não, não, isso não! Só voltamos ao trabalho se nos garantirem por semana 3$600!
Confessem que é para empalidecer de confusão. Não se protesta aqui contra a avareza do fabricante, protesta-se contra a sua generosidade: o operário resiste a ganhar: só trabalha se lhe diminuírem o salário: tem avidez de sacrifício, e deseja antes de tudo sofrer fome! Que mistério é este? Ei-lo desvendado:
Como sabem, há dois trabalhos essenciais no fabrico do lanifício: preparar a teia, o que leva uma semana, e produzir o tecido, o que gasta outra semana. Ora o fabricante descontava na semana do tecido uns tantos por cento do salário; e na semana do preparo levava a sua habilidade a descontar o salário todo.
De sorte que havia semanas gratuitas. E justamente os operários pedem agora que lhes paguem menos cada semana, mas que lhes paguem as semanas todas.
O fabricante exclama:
– 4$000 réis cada semana que tecerdes!
E os operários replicam:
– 3$600 réis cada semana que trabalharmos. Porque preparar a teia é tanto trabalho como tecê-la.
Tal é esta greve original, que não descrevemos com a sua precisão técnica, para não dar a estas páginas o aspecto de um tratado sobre lanifícios.
O que temos pois aqui, na realidade, é um fabricante que diminui arbitrariamente o salário dos seus operários. Estamos em frente de uma greve do capital! Ora abrindo o nosso admirável Código Penal, encontramos estes dizeres no Capítulo XI, secção 1ª, artigo 277º: «Será punida com a prisão de um a seis meses, e com a multa de 5$000 a 200$000 réis, toda a coligação entre aqueles que empregam quaisquer trabalhadores, e que tiver por fim produzir abusivamente a diminuição do salário, se for seguida do começo de execução.»
O código fala em coligação. Aqui houve só um fabricante; mas o que é crime para muitos indivíduos coligados, é decerto crime para o indivíduo isolado. O número não faz a culpa. O crime recai sobre o facto, não sobre o ajuntamento. O código define crime «o facto declarado punível pela lei penal» – e não acrescenta «segundo o maior ou menor número de pessoas».
De modo que a famosa greve de Oeiras se reduz simplesmente a isto: Um fabricante que diminuiu abusivamente o salário dos seus operários – e que cai portanto sob os rigores do artigo 277º do Código Penal.
Até a greve de Oeiras! Ah! não podemos possuir uma glória, um heroísmo, um chique, sem que não se descubra, daí a dias, que chique, heroísmo, ou glória, são casos burgueses que pertencem à Boa Hora! Vergamos sob o destino de ser medíocres! Todo o País tem uma revolta - nós temos a Índia! Todos têm uma expedição – nós temos o Bonga! Todos têm um poeta – nós temos o Sr. Vidal! Fazíamos tanto empenho nesta greve que nos nobilitava, nos revestia de uma atitude civilizada, nos dava a esperança de abrigarmos enfim no nosso seio, autêntica, legítima, essa grande elegância revolucionária, a Internacional! – e vê-se que nos achamos apenas com um caso de polícia correccional! Um a seis meses de prisão, que miséria! Ah! evidentemente só gozamos duas glórias incontestáveis, garantidas, à mão, nossas, só nossas – o Sr. Lisboa, e o Sr.... Suspendamos, por Deus!... e aquele, de quem um juramento terrível e sacrossanto nos veda pronunciar o nome!

in “As farpas” de Eça de Queiroz